Ao outro lado do Oceano

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

 Metrópole...


Não sei que dia é hoje, podia pegar o celular e ver, mas, não importa, mesmo eu tendo aprendido que cartas começam com o local e a data. Mas, não importa que dia é ou deixa de ser, importa o dia que estiver com esse pedaço de papel entre as mãos.


Não é doido que, mesmo com a tecnologia imensa que temos hoje eu tenha mandado uma carta que deve ter levado algumas semanas pra chegar? Acho legal isso, o envelope com as bordas verde-e-amarelo foi uma invenção da Europa pra quando mandassem uma carta para outro país saberem que aquela era pro Brasil... mas acho que já sabia disso e nem é por esse motivo que escrevo.


Escrevo essas linhas sentada no chão, entre várias bolinhas de papel das versões anteriores da mesma carta que não consegui concluir, que estava ficando ruim, que minha letra estava feia... confesso que já deviam fazer uns bons anos que não escrevia nada à mão. Normalmente escrevo listas de compras e alterações nos trabalhos que estou fazendo, coisa de poucas palavras.


A verdade é que tem algumas semanas que estou com esse pensamento recorrente na cabeça, que estou tentando voltar algumas casas no nosso Jogo da Vida para entender o quê aconteceu, em que jogada as coisas ficaram estranhas. Nem nossa conversa no aplicativo explica o que aconteceu, porque um dia estávamos falando e do nada... paramos.


Faço um mea culpa porque eu também não procurei, não cutuquei mais, porém... não o fiz por achar que ia ser chata, odeio me sentir o fardo de alguém, por isso, assim como você, acabo me calando enquanto espero um sinal de que posso voltar a puxar papo.


Lá fora chove torrencialmente já fazem uns dois ou três dias e tudo que eu penso é como queria algum alento. Antes que pergunte eu e Dominic estamos bem, o problema é que... não tenho com quem dividir coisas banais, pra quem mandar um áudio de vinte minutos, às três horas da manhã falando de um cliente ruim, de uma pessoa estranha que vi no mercado, de como passei a odiar a chuva nesse lugar quase tanto quanto odeio os dias de sol... 


Escrevi tanto que parece que minha tendinite voltou, por isso vou me abreviar e perguntar, com toda a sinceridade e sem nenhum tom de cobrança ou maldade: o que aconteceu com a gente? Sinto saudades nossas.


Com um amor saudoso,

J.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

 Minha J;


Minha. Não me interessa se minutos antes de ler isso aqui, você estava nua com o meu melhor amigo na mesma cama em que você costumava acalmar minhas tempestades. Foda-se. 


Foda-se tudo, porque as coisas parecem perdidas agora tanto quanto sempre foram, a diferença é que eu sempre achei que sabia o que estava fazendo, agora sei que estava errada.


Eu não sei o que fazer com a saudade filha da puta que eu sinto de fazer planos com o Dim. Não sei o que fazer com todo o futuro que planejei com ele agora que nem somos uma possibilidade.


Também não sei o que fazer com esse amor insano que eu sinto pelo Liam e com o quão perdida me sinto longe dele. Como se a vida não existisse antes dele aparecer, entende?

Mas eu sei que existia, porque você já existia.

Esse é o ponto. A sua existência coloca tudo em xeque. Mesmo longe, mesmo com esse nosso jogo infantil, triste e sádico, mesmo com um oceano de distância.

Mesmo sem ter sua voz durante o meu sono. Eu ainda sinto você. Como não sentiria?

Você sempre foi a maior parte de mim. Mais do que a pele arrepiada em choque com os lábios... Somos parte de uma mesma coisa.

A linha do destino se estica, dobra e se enrosca, mas nunca - NUNCA - se rompe.


Eu te amo pra caralho. E eu sinto você daí também.

Então, por favor... Me abraça essa noite?


Com amor,

H.Vincent

Schorodinger

domingo, 12 de abril de 2020

De repente eu estava vendo Helena limpando a cozinha e nada mais fazia sentido, olhei minhas mãos, meus dedos mexiam mas eles não pareciam meus, corri os olhos pelo braço até ver que eles estavam conectados ao meu corpo. Mas então...? Poderia ser sonho. Afinal a comida não teve gosto de nada. O som da rua parecia muito mais distante do que realmente era. Vou acordar. Me belisquei fechando os olhos, afinal se estiver dormindo vou ter que abrir os olhos.

Abri os olhos e tudo continuava igual. Devo estar em uma crise de despersonalização de novo. Foda-se. Tanto faz, ultimamente todo que eu queria era estar morta. Claro que não posso deixar transparecer isso pra Hell, mas... eu estou completamente esgotada. Sem a menor força pra continuar tudo isso aqui. 

Não. Não posso pensar nisso. Me levantei da mesa dizendo que iria tomar banho e ouvi um "de novo?", um fio de cabelo molhado tocou minha nuca. Então vou dar uma volta de carro. Não. Lembrei do pesadelo da noite passada. Era a mesma cena do acidente, só que quem dirigia era eu e no banco do passageiro estava Helena. No banco de trás uma voz de criança me chamou pelo nome. Na hora que virava o espelho para ver quem era eu via a mim mesma e, no movimento de tentar me virar inteira para ver quem era sentia meu pescoço estralar com tanta força que acho que foi ali que morri dentro do sonho.

Curioso pensar como uma merda de um sonho tinha estragado meu dia a tal ponto. O corpo tremia tão sutilmente que nem mesmo quem pegue minha mão sentiria. Eu estava me afogando em mim mesma, de novo. Raposa, jogue uma boia. Raposa? Não conseguia senti-la. Não... não... não me deixe aqui sozinha, não agora. Não... me tira daqui... anda... Não.

Abri os olhos. Estava no chão. Helena do meu lado, olhar preocupado. A raposa respirava aliviada. A cabeça latejando o corpo inteiro mandando espasmos como se falassem "dedos do pé, câmbio", "canela, câmbio". Tentei levantar e Hell me segurou.

- Calma, devagar... - Aos poucos ela me ajudou a sentar - Ta tudo bem? Você me assustou.

- O que... aconteceu?

- Eu tava dormindo - Só agora notei que ela estava com uma camiseta grande - Ouvi um barulho, não te vi na cama e vim ver o que estava acontecendo...

- E o que - A cabeça girou inteira, quase caí de volta, respirei fundo - Aconteceu?

- Não sou CSI... mas apostaria que tem relação com aquela garrafa vazia e lembranças ruins... mas vem cá.

Nada fazia sentido. Talvez fosse o que ela falava. Talvez ainda estivesse dormindo e daqui a pouco acordaria. Ao levantar senti o fio de sangue escorrer da perna. Que merda tinha acontecido aqui?

- Hell... eu...

- O que foi... - Ela viu minhas costas, ao que parece eu tinha caído em cima de outra garrafa igualmente vazia e que agora não tinha mais sua forma original - Puta merda Jana... vem cá, vou dar um jeito nisso.

De repente eu estava a caminho do banheiro e foi impossível não lembrar do dia que quebrei um copo na palma da mão. Foi um sentimento semelhante. Com cuidado sentia Helena tirar minha blusa e com a habilidade de quem já faz isso faz anos ir tirando caco por caco das minhas costas. O corpo pendeu para frente, não conseguia me sustentar em pé ou nem mesma de joelho. 

Cada pedaço de vidro que saía era mais uma confirmação de que eu não sentia absolutamente nada. Quis dizer para Helena me deixar ali e ir cuidar da vida dela. Talvez eu tenha dito pois notava nas palavras dela um tom de choro. Eu não entendia nada que ela falava, parecia outro idioma, às vezes ela parecia cantar. Me lembrei do dia que nos conhecemos naquela biblioteca. Acho que cada pensamento meu estava saindo pela boca pois a ouvia dizer para ficar calma. Sem perceber tudo foi escurecendo, escurecendo e eu apaguei.

Acordei em um sobressalto assustando tanto Helena quanto a raposa. O ar nos pulmões não vinha em quantidade, podia sentir o coração acelerado, as palavras voavam pela minha cabeça como se fossem pássaros enfurecidos. Não sentia nenhuma dor. A morena me perguntou o que foi, perguntei da noite passada. Nada de anormal. Ela deve estar querendo me privar das lembranças... passei a mão nas costas e nada. mas o que? Nada mais estava fazendo sentido. Caí de volta na cama. Tentar dormir pra ver se acordo em um mundo menos pior. Ótimo.

Entropia

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Não tem como dizer o que acontece. Pode ser um pico de stress, um ápice de riso, qualquer situação, quando você vê a sensação de estar sonhando está lá. Pode parecer confortável não ser atingido por nada, mas não é, é sufocante. Não vou dizer que é a pior sensação da vida porque já senti coisa pior. Mas é angustiante, você não sabe se vai conseguir parar, quando vai passar, se vai passar.

É uma defesa do cérebro antes de acontecer algo pior, penso que deveria durar pouco, acredito que pra maioria das pessoas dure segundos, seja imperceptível, mas pra mim acaba durando horas, dias, semanas. Arrisco dizer que já durou meses um tempo atrás. Arrisco porque afeta a memória e, quando penso nisso, tento ter lembranças antigas e tenho uma, com uns onze pra doze anos, estava em uma churrascaria e tenho a imagem de ter virado pra minha mãe e dito "tô com a impressão que estou sonhando", é só um flash, uma cena de, no máximo, cinco segundos.

Depois disso é um grande campo branco. Não lembro de mais nada. Minto, pra não dizer que não lembro de absolutamente nada eu tenho mais flashes de cinco segundos nos anos que se seguiram. Um no banheiro, um na escola... de resto não tenho nada. As coisas que alego ter passado ou é coisa que todo mundo passou, história que alguém disse que passei ou coisa que eu invento. Aprendi a inventar boas histórias sobre meu passado.

Se isso ficasse só no passado mais remoto maravilha, porém não é o que anda acontecendo. Todas as lembranças de anos recentes acabam se tornando algo branco, vazio. Ou, pra não perder completamente nada, ficam aqueles flashes. E o mais foda é que, de uns dois anos pra cá, começou a ficar mais intenso. Graças à internet descobri um possível nome pra isso: despersonalização.

Não gosto de usar muleta de doença, mas caso eu realmente tenha essa eu não sei o que fazer. Não sei como agir, não sei pra onde ir ou pra quem pedir ajuda. Houve uma época que eu conseguia sair das crises mais intensas provocando dor física. Hoje não funciona mais, é como se fosse uma pedra caindo numa lagoa: faz as ondas e logo volta tudo ao normal. Quase como se meu cérebro buscasse uma entropia. Entropia. Vou chamar isso aqui de entropia.

Nada é real. Ou é? Tem dias (como hoje) que eu vou acordar de um coma ou algo parecido lá nos onze anos. Só que acho que minha cabeça não é tão inventiva a ponto de criar tantos anos a frente... se bem que ela criou segundos de anos. Merda. Não sei mais o que fazer. E ninguém vai ter a resposta. Quando perguntarem o que é eu prefiro dizer que não é nada ao ter que explicar tudo isso... até porque ninguém vai entender mesmo. Então eu prefiro pegar, mentir tudo e pronto, ainda está funcionando.

Não. Não está. Sim. Eu estou em total conflito. E não é entre personalidades, é entre eu e eu. É diante de um espelho imaginário. E nesses momentos eu tenho a nítida impressão de que eu não existo e os versos de Pessoa (sempre ele e sempre esses versos!) me vem: Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo.

Já não sei mais sobre o que estou escrevendo. Eu devia estar trabalhando, mas zero ânimo de trabalhar. Amo meu emprego, mas nos últimos dias tudo tem sido um grande nada. E aí a urgência de fazer algo que marque, que seja realmente diferenciado fervilha. Mas eu não posso fazer e, quando vejo, o dia passou e não fiz nada. De novo. Talvez esse campo vazio de lembranças seja justamente por isso, por eu nunca ter feito nada. E Pessoa vem de novo.

Tudo

sexta-feira, 27 de março de 2020

- Seu olfato lhe enganou, raposa, não era Helena.

- Mas era alguém com cheiro parecido.

- Parecido não é ela.

- Eu ainda sinto - Podia quase ver Tsuki com o focinho levantado tentando aspirar mais o cheiro que ela dizia sentir no ar - Tem certeza?

- Claro que tenho!

- Falando sozinha de novo? - Helena veio da sala parando do meu lado - Ta ligada que pode ser sinal de esquizofrenia né?

- Vocês duas vão me enlouquecer um dia.

- Duas? - Ela olhou para os lados - Espera, vamos voltar e começar do começo... com quem estava falando?

- Você não entenderia.

- Tenta.

- Hoje não.

- Janaína Barcelos - Ela tomou a mão na minha - Negação é tão ruim quanto esquizofrenia.

- E desde quando você é psicóloga?

- Nossa - Helena soltou minha mão voltando para dentro de casa - Desculpa então.

- Pronto, Tsuki, satisfeita?

- Com o que? Você ser escrota com a única pessoa que te entende? - A vi se virando de costas para mim, se enrolando, dando um largo suspiro e dormindo. - Não coloca essa na minha conta não, Janaína.

Pronto. Agora a merda toda estada feita e eu ainda tinha um graveto pra mexer nela e fazer feder e espalhar ainda mais. Parabéns, Janaína. Dez horas de parabéns pra você. Trinquei os dentes pronta a explodir quando o celular no bolso vibrou. Um novo e-mail. E-mail. Quem ainda usa isso? Era uma resposta a um e-mail que enviei quase um ano atrás. 

"Prezada Janaína, tudo bom?

Meu nome é Roberto e eu sou locutor na rádio Princesa, seu pedido deu um certo trabalho de conseguir encontrar. No entanto eu me lembro da chuva daquele dia, por isso eu tinha uma vaga ideia do que toquei naquele dia. Depois de muito procurar acabei encontrando em um CD o backup da playlist daquele ano inteira, coisa que eu nem sabia que a rádio guardava. Enfim... no horário aproximado tocou essas três, espero que seja uma delas a da sua lembrança:

Titãs - Os Cegos do Castelo
Goo Goo Dolls - Iris
Rammstein - Ohne Dich

Espero que te ajudar. Precisando de mais informações estou por aqui, agora sei onde procurar haha

Atenciosamente, Roberto Silva."

Confesso que, de todos os e-mails que eu esperava hoje, esse era o último da lista. Talvez ele nem mesmo estivesse ranqueado. Uma dessas duas músicas estava tocando quando batemos. Eu lembro vagamente. Curioso como a memória trai a gente. Quando mais nova tinha feito aula de violão, desenvolvi um ouvido muito bom pra música mas não lembrava daquela música.

Entrei em casa. Porta do quarto fechada. Luz por baixo da porta. Helena cantarolava alguma coisa. Peguei os fones e fui para os fundos da casa. A cidade estava em um silêncio quase surreal. Quase apocalíptico. A única coisa que se ouvia eram algumas motos de entrega passando ora pra um lado ora pro outro. Me sentei na grama, o escuro da noite deixava o céu apenas para a estrelas.

Dei o play na primeira. Não era bem essa. Na segunda Uma orelha se levantou baixando em seguida. Quando o primeiro acorde da terceira música veio Tsuki acordou. O movimento rápido dela foi como de uma raposa real que caça para comer e acabou de ver uma lebre indefesa sair de sua toca.

- Essa música, menina - A voz oscilava entre o grave e o normal - Era essa música.

- Eu sei.

- Ela é bonita... pode repetir, por favor?

- Claro.

Perdi as contas de quantas vezes ouvi a mesma música. A conta perdida também era a de quantas lágrimas fugiram dos meus olhos. A noção do tempo também foi embora junto com todo aquele sentimento preso. Tinha de levar isso para a terapia.

- Sinto cheiro de...

- ... Helena.

- Como me ouviu chegar?

- Seu cheiro.

- Cheiro? - Ela riu enquanto eu, deitada no chão a via de cabeça para baixo - Tudo bem que eu estou suada, mas não é pra tanto... - Helena se cheirou - ... tá, tem um cheirinho, mas nada que possa ser tão absurdo e rastreável.

- Tsuki me falou do cheiro.

- Tsuki... - Ela se sentou ao meu lado - A raposa?

- A própria.

- Menina - Tsuki me cutucou - Confia nela, por favor.

- Tem certeza?

- Tenho.

- De novo falando com ela? - O olhar era mais curioso que julgador - O que ela acha de mim?

- Ela gosta de você.

- E o que mais?

- Tsuki pediu pra agradecer por cuidar de mim.

- Eu que agradeço por cuidar da gente, raposa.

- Hell - Tirei os fones - Preciso te contar uma coisa... uma história...

Hora do salto de fé. Respirei fundo tentando organizar todas as palavras antes de falar, quase como fiz na terapia, só que o divã era um gramado úmido, o teto era o céu e a terapeuta Helena Vincent. Falei e falei.

Voando

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Quando eu era criança eu tinha um passarinho amarelo
Eu não entendia que ele precisava voar
Ele sempre comeu muito menos que os outros pássaros livres e acredito que daí tenha vindo a expressão
"Comer feito passarinho".
Quem disse isso pela primeira vez devia criar um pássaro numa gaiola.
Os outros pássaros lá fora comiam tanta coisa que jogavam pra eles e o meu pássaro...
Ele mal comia.
Ele também cantava muito mais alto que os outros pássaros. Ele cantava o tempo todo
E eu podia jurar que ele estava feliz.
Eu admirava suas notas inalcançáveis
Uma vez pensei em abrir a gaiola e deixar ir
Talvez tenha sido o dia em que realmente o amei. Hoje sei.

Mas ele cantava e era feliz

Ele cantava porque era feliz, afinal
Que dedução estúpida!

Quando fazia calor demais, colocavam um pote com água pra ele se molhar
Quando o tempo era frio,jogavam uma pequena manta sobre sua gaiola e
eu tinha tanta certeza que era suficiente
porque mesmo que a manta o privasse da luz do dia e talvez nem o aquecesse como esperavam, ele continuava cantando.

Hoje eu sei que meu pássaro via os outros pássaros voando e sentia que era uma ave estúpida
que tinha asas em vão
porque nunca pôde voar.

Hoje eu sei que seu canto era agonia
Que seus agudos eram tão altos quanto o desespero de estar só e preso em uma pequena gaiola.

Quando ele morreu, eu o enterrei na minha alma.
Morreu acreditando que um dia poderia voar como os outros
Com os outros
Morreu em uma manhã fria com os olhos congelados para o céu azul de inverno.

Morreu só.
E antes de morrer
Cantou.

O Infinito de Schrödinger

domingo, 30 de junho de 2019

Eu transbordava convicções e incertezas constantemente chocando-se, ainda assim, sempre convencida do que faria. Ainda assim, sabendo o que dizer. Nunca voltando no que falava. A lua era minha aliada. Ao cair da noite, os holofotes deixavam em destaque aquele velho sorriso de canto maroto que gostava de hospedar meu rosto. As luzes deixavam em evidência uma multidão que gritava por mim, a qual eu via e me jogava em cima das tantas mãos que me apoiavam, faziam cócegas e, enquanto brincávamos com as estrelas, ríamos a noite toda. O show nunca acabava. As viagens eram insanas. Indescritíveis.
Só que você veio.
Novamente, VOCÊ veio.
Você me disse que eu podia te ligar a qualquer hora da madrugada.
Você ofereceu suas mãos para me guiar no escuro com as luzes totalmente apagadas... Céus, eu nunca provara tamanha insanidade antes! Eu te quis! Como quis!
Eu gostava de brincar com as estrelas.
Eu gostava da multidão.
Gostava dos risos...
... mas o que era tudo isso perto de fechar os olhos e imaginar seus braços estendidos à minha frente em uma imensidão escura e vazia?
Apenas você e eu.
Assustador. Desafiador. O suficiente pra deixar tudo de lado e confiar, permitir
Me entregar.

As luzes se apagaram.
O mundo se calou.
Estávamos a sós.
estendi a mão, toquei seus dedos, você estava lá.
Sabe bem o quanto sou desconfiada.

Dei os primeiros passos de olhos fechados em sua direção, tudo era tão vazio que só era possível ouvir o eco. Mudei de ideia.
" - Vem você primeiro! Se joga nos meus braços! Eu te pego!"

Pude ouvir você engolir a seco.
Fiquei parada. Esperei. Você ofegou. Demorou a se decidir, mas começou a andar. Você veio. Mais rápido. Um pouco mais rápido. Quando percebi, estava correndo. Estendi os braços e você se jogou neles.
Te segurei forte. Estava em êxtase. Você confiava em mim.

Permanecemos ali, por alguns instantes em silêncio sentindo o momento, o tremor do corpo, a adrenalina, o pulsar do peito, a respiração ofegante... mal sabíamos o que pensar. Eu queria te beijar, confesso.
Talvez você também quisesse. Preferi não arriscar.
Você foi chegando perto do meu rosto, meu coração desacelerou. Senti minha pele gelar. Internamente, implorei pra você parar (por não saber o que faria em seguida), embora meu corpo gritasse para que você continuasse e fosse intenso.
Seus lábios tocaram o canto da minha boca. Alguém te chamou e você sumiu. Pela primeira vez eu estava sozinha no meio do nada. Lá estava eu, confusa e sem saber onde estava, o que tinha feito e sem me dar conta de que já havia começado o meu caos: ali comecei a esquecer quem eu era.


Perdida, lembrei que ainda tinha o cheiro das árvores, da poluição dos carros e a companhia das estrelas no céu. Respirei fundo. Não consegui notar meu olfato. Algo estranho no meu nariz... eu estava para chorar? Olhei para o céu em busca das estrelas, queria convida-las para brincar.
O céu estava vazio. As lágrimas vieram e em pouco tempo tornaram-se incessantes.
Sentei-me ao chão, apoiei os cotovelos sobre os joelhos, debruçada e chorei como não chorava há muito tempo.
A imensidão ao meu redor havia se tornado uma compacta caixa preta. Sem muito espaço. Sem saída. Sem rastros seus. Eu estava ali, presa e em pânico.
Chorei até adormecer.

Acordei com meu celular vibrando, era você. Me chamou por um apelido carinhoso. Que houvera? E aquela voz que havia te levado pra longe? Onde estava? Subitamente, você apareceu ao meu lado dentro da caixinha e sentou-se comigo. Contou-me segredos. Eu ri quando você me falou sobre suas manias na época de escola. Você riu quando contei das roupas que eu costumava usar. Discutimos sobre metafísica. Falamos sobre buracos negros, sobre galáxias e vidas em outros planetas. Conversamos sobre viagem no tempo, sobre séries antigas, sobre comédias românticas e aquele show que todo mundo tinha ido, exceto a gente. Conversamos a madrugada toda e então você precisou ir, mas não chorei dessa vez. Você prometeu voltar no outro dia.
Tomei uns dois ou três comprimidos e esperei que o dia passasse. De qualquer forma, eu só precisava te ver outra vez.
Eu não percebia, mas aos poucos eu não notava mais a caixa, não notava a escuridão ou o isolamento. Eu não notava mais nada que não fosse você.
O tempo passou tão rápido e à medida que você sumia, eu descobria que não havia nenhuma luz aqui.
Tudo bem, você voltaria depois.
E quando partiu outra vez, percebi que também não sabia por onde você saía.
Não há janelas ou portas.
Não que eu possa ver.
Talvez só você saiba e me faça crer que até o oxigênio vem de você.
Mas tudo bem, porque você volta e então respirar será simplesmente imperceptível e automático.
Só não demora muito pra voltar, tá?
É que de um tempo pra cá as tuas idas são cada vez mais longas e a gente já não conversa
Não posso mais te falar das estrelas, como vou te falar delas se não as vejo há anos?
Não sinto mais você respirar do meu ar de quem conhece o infinito
Talvez por isso te vejo cada vez menos...
E como vou saber do infinito se tudo aqui é tão limitado? Nem do cheiro das árvores me lembro!
E notei agora, estou em dúvida
A caixa está ficando pequena?
Ou eu cresci?
Não tenho como saber...
Me diz você.