Farmacodependencia

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Quem me vê passar provavelmente pensa que se eu deixasse de existir, não faria a menor diferença. Tudo bem, as vezes também penso assim. Já perguntaram se eu tinha problemas com álcool ou usava drogas ilícitas, já fiz terapias e também me levaram a palestras que alertavam sobre os riscos da cocaína e do crack. Mas erraram. Diferente do que os estranhos pensam, não sou o tipo "nóia" que financia o tráfico, sou o "nóia" que contribui com o estado. Hipocondria não é o termo correto, pois não tenho medo de adoecer, eu tenho medo da vida. O nóia que usa as "drogas fornecidas pelo governo". O nóia que paga impostos. O nóia socialmente aceito. Sou o drogado da farmácia. Um drogado lícito. Um doente.

Devo dizer: na prática, é quase igual. Um viciado em cocaína sofre com a fissura e precisa a qualquer custo da droga pra evitar um surto. Eu vivo o mesmo. Não é o "pó", mas são os comprimidos. Sedativos e mais sedativos. Tive a fase da anfetamina, mas essa consigo controlar com mais facilidade. Psicotrópicos, bendiazepínicos... Eu poderia citar qualquer tipo de droga e explicar seus efeitos. Sou um viciado "consciente" - se é que isso existe. Eu sei que tantos remédios pouco a pouco começam a matar, mas não importa muito. No fundo nada importa. O vazio dentro de mim é maior do que a minha força pra lutar contra o vício. Não tenho paz, minha tranquilidade só aparece quando estou sedado. Sou covarde. Sou a vergonha da família, a sujeira escondida debaixo do tapete.

Agora mesmo estou "sóbrio" e olha só: não é uma boa ideia. Cá estou, expondo meus dramas publicamente. Lamentando. Antes que pense qualquer coisa, saiba que não sou um desocupado que precisava ter apanhado mais na infância, nem mesmo meu nome você sabe, então peço gentilmente: não me julgue. Não sei lidar com culpas e se você me acusar de qualquer coisa, terei que tomar mais comprimidos do que o habitual. Aprendi a não precisar de ninguém. Não preciso de amigos, não preciso de amores, não preciso. Só preciso das minhas fórmulas de equilíbrio.
Criei minhas próprias estratégias, minhas próprias fugas, aprendi também a puncionar veias, afinal, nas minhas piores crises eu não suportaria esperar o efeito dos remédios começarem. Demora demais. É bem mais rápido dissolver e injetar. Como você vê, não existe mesmo grande distinção entre a minha vida e a vida do drogadinho jogado em uma cracolândia. É o mesmo vácuo interno, a mesma prisão, o mesmo buraco, separados apenas por classes.

Não sei resistir, então prefiro viver como um zumbi. Amortecido, anestesiado, fora de mim. Prefiro não pensar em mais nada. Prefiro não sentir dor. Prefiro assim, estar 24 horas por dia completamente "drogado", porque sentir dói, e dor se alivia com remédio.


 Atenciosamente,
O "chapado" que está tentando sobreviver a mais um dia de abstinência.

Astronauta de Mármore

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Mais um dia nesse buraco... são nesses momentos de lucidez, em que não estou com aquilo em mim, que me lembro aí de casa e que mais sinto saudades tuas, mãe. Sei que não sou a melhor de suas filhas (na verdade sei que devo ser a pior, aposto), mas, queria ter forças pra sair desse buraco fundo em que me enfiei, queria mesmo. Não é clichê de viciada. Sei que nada do que aconteceu conosco, do que aconteceu em nossa casa justificava o que acabei fazendo e onde vim parar, porém acabei dando aquele passo, aquela fuga na madrugada. Precisava sair. Sei que não vai me entender, que não vai me perdoar (e nem espero o contrario) mas, mesmo assim... eu gostaria do seu perdão um dia.

Os dias aqui não são fáceis, no meu buraco vivemos em mais de vinte, dos quais eu sei o nome de meia dúzia, dos quais eu conheço a história entrecortada de um ou outro. Consegui esse papel e caneta com um desses amigos, Téo, ele disse que achou na rua e trouxe pra cá... mas acho que a história não é bem essa, mas não vem ao caso agora. Já sinto meu corpo tremer, minha letra deve estar quase ilegivel agora, eu estou tentando me controlar mas não consigo mais, há muito perdi o controle sobre isso e, tem momentos que espero morrer logo, pois a cura parece algo distante demais.

Bodas de Prata

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Que dia é hoje? Alguém se lembra? "Quinta-feira", é o que ele diria e eu mais uma vez concordaria dizendo: "É... Quinta-feira." E guardaria o meu silencioso pesar.
Acordei essa manhã e vi que ao meu lado ainda adormecido, estava o homem com quem me casei há exatamente vinte e cinco anos atrás. Quando o conheci eu ainda era bem jovem e cobiçada. Tinha um bom emprego e dava os primeiros passos livre das correntes de minha infância e adolescência tão limitadas. Eu cresci sonhando apenas com liberdade. "Casar" nunca foi prioridade. Aí ele apareceu. Tentei desistir umas três ou quatro vezes, mas ele se atirava em frente ao meu carro, ameaçava suicídio e me tirava do trabalho, até que eu voltasse pra ele. Acreditei que ninguém me amaria como ele amava, então nos casamos em Novembro de 1987. Não posso mentir: quando casei, não o amava, mas tinha esperança de amar um dia. Três anos depois tivemos um casal de filhos gêmeos. Ele trabalhava 14 ou 15 horas por dia, as crianças choravam em tempo integral, foi questão de tempo até que eu estivesse submersa em uma depressão profunda. Ele perdeu o emprego na mesma época em que eu estava a ponto de tirar minha vida.

Chovia quando ele me encontrou prestes a engolir um punhado de chumbinho. Ouvia-se o som dos trovões e o choro dos bebês, como se não bastasse, lembro do rosto dele, empalidecido, me dizendo pra pensar nas crianças.
Ah, as crianças! Perdi as contas de quantas vezes encarei aqueles bercinhos implorando que eles crescessem logo e, que ao menos uma vez, pudessem cuidar de mim. Então me calei, acreditei que o tempo levaria aquela onda de desespero pra longe e finalmente as coisas ficariam mais calmas. Engano meu.

Logo ele voltou a trabalhar, os bebês foram crescendo, a vida seguia implacável. Eu ia a reuniões de escola, lavava roupas, preparava a comida, fazia curativos, dava remédios pra febre, apartava brigas, tudo sozinha. Não tinha mais "família", amigos ou passeios. Eu era mais uma dona de casa. De menina invisível a Cinderela. De Cinderela a robô. Não podia chorar na frente deles, quando as lágrimas apareciam, eu me trancava no banheiro, até que cansada de fugir, acabei deixando minhas emoções de lado. Sobrevivi, todo esse tempo, sobrevivi.

Vinte e cinco anos depois, o espelho me mostrava uma adolescente quase-morta, triste e com rugas. Acorrentada, mais uma vez. Meio sem rosto, meio sem identidade. Mais uma dona de casa, entre tantas outras. Logo eu, que apreciava tanto o ar da juventude! Nem parecia a mesma moça que há pouco mais de 25 anos atrás recebia vários convites pra jantar dos rapazes mais bonitos da cidade. Nem parecia a mesma garota que sonhava em ser bailarina e se apresentar para grandes plateias por todo o mundo. E nem me dou ao luxo de pensar como teria sido, talvez esses devaneios me tragam desgosto e arrependimento.

Mas e quanto àquele homem que acordou ao meu lado? Onde ele estava durante todos esses anos? Onde ele estava quando precisei me sentir humana? Quando as crianças gritavam a dor de um dentinho nascendo ou tinham febre alta, onde ele estava? Onde ele estava quando eu era consumida pela solidão dia após dia? Trabalhando, não é? Tudo bem, eu não posso reclamar. Pode ser que nem mesmo eu tenha o direito de murmurar, já faz tempo demais.
Eu só queria compartilhar a minha linda história de amor nessa data tão especial. Queria desejar um "Feliz 25 anos de casamento" a esse homem que acha que hoje é apenas mais uma quinta-feira e dizer que com o passar dos anos, passei a amá-lo. Não sei bem como é o amor, mas acredito que o amo. As vezes, senti estar dormindo com um estranho que talvez nem saiba lhe responder corretamente se você perguntar a ele a cor dos meus olhos.  E queria por fim, dizer que ainda lembro do ultimo "eu te amo" que ouvi da boca dele em Novembro de '87. Pois esse mesmo "eu te amo" que me fez acordar vinte e cinco anos seguidos ao lado dele, ainda que quase desconhecido.

Feliz Bodas de Prata, querido.