Leve

domingo, 10 de novembro de 2013

Talvez aquela última conversa, na padaria tenha sido a definitiva. O celular dela, prontamente desligado ao tocar, foi o badalar final. A pá de cal. O último sopro. A última pessoa a sair do prédio antes da implosão. Conversaram mais um ou dois minutos ao fim do sino. Não mais que vinte palavras. Ela o viu sair pagando o chocolate quente e um serenata de amor pra ela. Provavelmente ela estava crente de que ele voltaria ali nos próximos dias, sempre com um pretexto diferente, como se buscasse sempre reencontra-la. Ele saiu colocando o capacete sem a vontade de voltar. Coração partido? Sim, claro. Mas, por mais estranho que possa parecer, tranquilo. Porque ele a deixava com outrem cuidando dela. A emoção tomou conta dele ao subir na moto e dar a partida saindo rumo a sua casa, no litoral. Uma lágrima ousou sair de seus olhos e molhar seu rosto. Ao chegar em casa havia uma carta na caixa de correio. Conta? Não. Letra bonita. Algumas notas musicais ornavam o envelope. A pianista. Ele suspirou entrando e lendo as poucas linhas. Ela agradecia por tudo, mas tinha se encontrado com um velho amigo e esse lhe fez uma proposta daquelas impossiveis de recusar: passar dois anos estudando piano em Viena, Austria.

No fundo ele sabia que o romance com a Pianista duraria pouco. Durou o suficiente pra se tornar inesquecivel. O mesmo que havia acontecido com ela. Claro que ela era diferente. Era algo infinitamente maior, mais intenso, mais duradouro. Se ele fosse compositor comporia o réquiem agora. Mas não era. No máximo ele escrevia e desenhava, compor não era com ele. Deixou as chaves e o pão sobre a mesa. Esperou a casa perder a luz natural que trespassava a cortina. Em poucas horas deixou que as duas fossem. Pra pianista depois escreveria um e-mail lhe desejando sorte e tudo de bom e não esquecer de visita-lo quando voltasse. Para ela... para ela... subiu à laje vendo o sol sumir aos poucos e as nuvens adornando-o com uma coroa. Fechou os olhos, sorriu e, mentalmente escreveu uma pequena carta onde, resumidamente, despedia-se dela. Ao abrir os olhos se sentiu mais leve. Leve ao ponto de saber que ela, certamente, receberia a mensagem e ficaria e tiraria os pés do chão se deixando levitar, quem sabe até voar acima das nuvens. Assim como ele fazia agora. Leve de leveza, leve de beleza, leve com certeza, leve com clareza, leveza de leveza.

Vinho tinto

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Cheguei ao apartamento dela naquela noite de agosto. Ouvi, ainda do lado de fora, o som da música que ela escutava. Blues. Virei as chaves devagar, evitando fazer barulho. Entrei tirando os sapatos. Certamente estava embriagada, tivera um dia difícil e nessas ocasiões era bom nem tentar conversar. Ao levantar a cabeça, vi duas garrafas de vinho tinto sobre a mesa. Olhei para o sofá e vi o corpo dela, quase nu, iluminado apenas pela luz da rua que atravessava a janela, as luzes do apartamento estavam apagadas. Ela estava com os olhos fechados, parecia sentir as notas da música com toda intensidade que havia dentro de si. Tomei o que restava do vinho em uma das garrafas e sentei-me ao chão enquanto a observava. Seus lábios se moviam sem emitir nenhum som, seus dedos deslizavam sobre o próprio corpo no ritmo da música. Ela parecia ter saído de alguma tela. Era surreal. Senti que os lábios dela me chamavam quando sutilmente aproximei-me dela, toquei seus cabelos, seu rosto e então juntei meus lábios aos seus. Suas mãos encontraram as minhas. Senti que seu corpo sentia frio, então a escondi em minha pele. Sentia seu cheiro, seu beijo lento, seu toque certeiro. E sem nenhuma palavra, a amei até que o sol voltasse. Gravei-a em mim. Decorei cada parte de seu corpo. Aprendi a ler como se fosse partitura, já sabia a forma correta de tocar. Apreciei-a com toda dignidade da composição perfeita que ela é. Ela ficou, eu parti. E de todas as canções, ela ainda é a minha favorita.

Coleção de despedidas

sábado, 26 de outubro de 2013

Meu amor;

Tirei a roupa, abri o chuveiro e tentei lavar a mente, a alma, o coração, em vão tentei tirar de mim qualquer sentimento que me fizesse sentir tamanha dor. Lembrei de quando eu tinha quatro anos de idade, o primeiro dia na pré-escola. Eu realmente não queria ir, porque não me cabia sair do meu mundo que até então se resumia a um jardim, um balanço feito com um pneu amarrado em uma corrente e uma caixa de areia com baldes e pás. Tudo o que eu sabia da vida se resumia nisso. Tinha o céu também, que eu achava que era meu. Eu gostava de ver as nuvens também, jurava que em algum momento elas "cairiam" ali no meu quintal e teriam a mesma textura de um colchão, então eu brincaria em cima delas. 
As únicas pessoas que eu conhecia eram os meus pais, meu irmão e meus avós. Conhecia alguns primos. Era confortável, eu não precisava de mais nada, no meu jardim tinha a minha árvore gigante, tinha as minhas flores favoritas, existiam também os insetos que eu gostava de observar. Eu não precisava de mais nada, era feliz daquele jeito. Não me era cabível a ideia de estar em um lugar cheio de crianças desconhecidas e maldosas com uma professora gritando comigo por eu ter feito alguma atividade errado. No meu primeiro dia de aula, senti a dor de uma ruptura. Chorei, gritei, grudei na minha mãe, implorei que ela não me deixasse lá... Não teve jeito. Passei ter que encarar aquilo e levei até onde pude. Eu não estava disposta a abrir mão do meu mundinho para enfrentar o mundo de verdade - eu nunca estive - e eu ainda não estou.
Dois anos depois, a minha avó materna morreu. Pela segunda vez, algo se rompeu em mim. Eu não sabia muito bem o que era "morrer", não sabia direito o que era "perda", tudo o que me disseram é que eu não a veria mais, nunca mais. Desde então, a morte se tornou sinônimo de "não ver a pessoa nunca mais", e muita gente tem morrido por aqui - ainda que respire.

Continuei a crescer e perder. Perdi a empolgação que eu tinha em todo Natal. Perdi o entusiasmo que eu tinha em relação a tudo. Perdi a energia que tinha pra correr. Perdi os meus melhores amigos. Perdi a confiança nas pessoas. Perdi a alegria que eu sentia ao ganhar aquele picolé azul, ou ao comer pamonha (hoje eu detesto pamonha). Perdi palhetas. Perdi pedaços de chocolate que guardei na geladeira. Perdi coisas bobas, perdi coisas que valiam muito também. Perdi coragem. Perdi forças. Perdi você. E quando perdi você, parece que perdi tudo o que ainda tinha restado, embora eu já esteja cansada de ter de sussurrado isso pra você nas minhas noites de febre enquanto sentia a sua falta.

Sabe o que me deixa mais perplexa? Em cada uma das minhas perdas, eu sentia novamente a dor de todas as perdas anteriores. Todas rupturas novamente. A simples ideia de perder qualquer coisa, por menor que seja, me assusta, porque eu já sei que a dor será insuportável. E depois de tudo, eu me apaixonei. Meu amor, eu me apaixonei por outra pessoa. É estranho te dizer isso, porque eu te amo, mas me apaixonei por outra pessoa e também passei a gostar de outra. Nem eu entendo, as vezes juro-de-pé-junto-e-amarrado que sou completamente maluca. Com a pessoa que gosto, eu acho que consegui superar alguns traumas do passado, coisas que só você soube dos detalhes. Fiz o que planejava ter feito por você, com você. Me perdoe (?) por isso. Só que hoje, tudo me feriu de uma forma bem voraz. Eu vi o metal correr pela minha pele enquanto o sangue escorria e não gritei. A pessoa por quem eu me apaixonei também me disse "adeus", assim, sem dizer. Não sei se você vai me entender. 
Hoje, enquanto eu estava no banho, já não sabia mais distinguir o que era lágrima e o que era só a água do chuveiro. Perdi as forças, sentei no chão e chorei. Chorei, porque todas as rupturas vieram de uma só vez. Chorei e questionei mais uma vez o motivo de você não estar aqui, porque se você não tivesse morrido, eu te ligaria e te ouviria. E eu sei que falaríamos coisas sem nenhum sentido. Sei que eu perguntaria qual país você acha mais interessante, ou discutiríamos sobre MMA. Poderíamos até falar dos coalas de chocolate que vendem no bairro da Liberdade até você dormir como sempre fazia. E eu ficaria ali por horas em silêncio ouvindo a sua respiração leve. Eu poderia ao menos fingir que sou feliz, por algum tempo eu acreditaria que tudo estava bem e eu não precisava de mais nada porque você estaria lá pra me fazer esquecer o resto do mundo, mas você não está.
Eu não tenho pra onde correr. Minha mãe não faz mais chá de camomila pra mim quando me vê chorar. O meu pai está bravo comigo, eu vivo estragando o carro dele e pegando multas, as vezes nem fui eu e ele diz que a culpa é minha. Amanhã eu tenho um vestibular pra fazer, e pra ser bem honesta com você, eu não vou. E não vou porque sei que não vou passar. E digamos que, se por ironia do destino eu tirasse nota suficiente pro curso que planejei, quando começar a data da matricula da faculdade, estarei trancada em uma clínica de reabilitação. As vezes sinto que estou perto de te encontrar, seja lá onde você estiver, no céu, em algum canto do universo, ou em qualquer lugar espiritual hipotético, eu sinto que estou perto de te encontrar. Nem que seja estar perto por também estar debaixo da terra. Não sei se ainda creio em mim e sei que por isso devo te pedir perdão. Todos os dias cometo erros. Todos os dias. Eu sei que é patético escrever assim sabendo que você não lerá ,que você nunca vai saber nada disso aqui nesse planeta, mas eu preciso contar, preciso te dizer que eu estou quebrada, que eu queria que as pessoas nunca partissem, que o "adeus" não existisse. Preciso dizer que não sei ser sozinha e não sei estar com alguém sem levar esse alguém pro abismo comigo. Preciso dizer que lutar por mim é dar murro em ponta de faca, porque você tinha razão, de fato eu sou "impossível" de tão teimosa. Eu preciso dizer que sinto falta da tua voz. Eu ainda amo você.

E eu sempre vou amar você.

Desde que você partiu.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Vez por outra sinto um alívio por você não estar tão presente, você certamente odiaria a vida que tenho levado. Lembro de um dia ter criticado você por uma música do Nirvana que você cantarolou no telefone. Eu sempre achei Kurt Cobain um idiota e, olha que bela contradição: Hoje eu entendo a idiotice dele, ao menos um pouco. Ou acho que entendo. Passei a noite ouvindo um acústico do Nirvana. Lembro do trecho da carta suicida de Kurt Cobain quando ele escreveu: "Devo ser um daqueles narcisistas que só dão valor às coisas depois que elas se vão. Eu sou sensível demais. Preciso ficar um pouco dormente para ter de volta o entusiasmo que eu tinha quando criança." Engraçado. Me identifiquei. Sou assim. As vezes me sinto até egoísta. Em um outro trecho a carta diz: "Existe o bom em todos nós e acho que eu simplesmente amo as pessoas demais, tanto que chego a me sentir mal." Eu sempre me entrego a tudo até com as forças que não tenho. Uso de tanta intensidade que frustro a mim e aos outros.

Você não gostaria de ver o quão grogue estou agora, ou enquanto tocava violão há uns dez minutos atrás. Você odiaria ver o quanto tenho sido auto-destrutiva. Odiaria o bar que eu frequento e odiaria ver a forma indecente como eu sorrio pro garçom enquanto bebo. Odiaria o meu tom de voz quando peço mais gelo no whisky, ou o meu tom de voz quando peço a quarta dose. Você odiaria ouvir o som do copo batendo na mesa. Odiaria ver um cigarro aceso entre meus dedos. Odiaria me ver voltando pra casa quase cambaleando e odiaria ainda mais me ver deitada no chão por horas olhando pro teto. Mas eu sei que nada te deixaria com tanta raiva quanto me ver fazer isso todos os dias e saber o quanto eu choro depois de tudo. E choro por mesmo depois de três anos, não ter parado de tomar aquele monte de comprimidos tarja preta. Eu te prometi, não consegui, mas olha, eu diminuí a dose. Lembro de quando você me disse: "São três da tarde e você está tomando CINCO comprimidos pra dormir. Você tem noção do grau de depressão em que chegou?" Não, amor, definitivamente eu não tinha. Se eu soubesse que você iria embora tão cedo, eu teria passado mais tempo acordada. E eu teria me empenhado mais em ser algo bom na sua vida, mas sabemos que não fiz. Não fui. Eu tentei, como aquela vez em que comecei a procurar emprego porque a gente queria casar, revirei todas as faculdades da cidade pra te ajudar com a transferência, mas nenhuma faculdade nessa maldita cidade tinha o seu curso... Agora tem. Eu poderia dizer que isso é bom, porque eu quero cursar a mesma coisa que você cursava, mas não é. Você não está aqui. Essa cidade poderia explodir que eu nem me importaria.

Não deixei de ser impulsiva, ainda sinto raiva com facilidade. Agora mesmo estou com raiva. Estou sóbria. Não sei mais estar sóbria e feliz ao mesmo tempo. Sempre achei feio mulher bebendo, falando palavrão e essas coisas. Hoje faço tudo o que sempre odiei. Simplesmente pra fugir dessa raiva que eu sinto por você ter morrido. Por eu não ter feito nada. Por eu ter perdido o meu tempo longe de você e por todas as vezes que brigamos. Você é um idiota. Não importa, você vai ser um idiota pra sempre, porque você enterrou a porra do meu coração com você. Sabe qual é a parte do dia que mais dói? Quando eu ligo para o seu número e aquela vagabunda da operadora do celular diz que "esse número de telefone não existe". Como não existe?! Há um ano atrás eu ficava 2, 3, 4 horas falando com esse número pra agora ouvir que não existe? Eu recebi mensagens que nunca apaguei desse número que agora, não existe. E eu faço isso todos os dias. Todos os dias eu ligo e tenho a esperança de você atender e dizer que era tudo uma brincadeira de mau gosto, mas a realidade sempre cai sobre mim como uma tempestade que estraga um domingo de sol na praia.

Desde que você se foi, nunca mais comi aquele doce que era o nosso favorito. Passei a torcer pro Atlético, porque você gostava do Cruzeiro. Eu faço pra te irritar, porque gosto de te imaginar torcendo o nariz pra mim ao me ver usando uma camisa do Atlético. Gosto de imaginar sua voz dizendo: "Não tenho namorada atleticana, sai daqui", gosto de pensar no beijo que roubaria.
Desde que você partiu, passei a beber aquela cerveja que você falava que era ruim. Eu sempre detestei cerveja, você sabe, mas bebo pra te contrariar. Bebo pra fazer birra. Faço tudo ao contrário do que você gostava, porque não quero lembrar que você gostava. Não vivo mais pra te agradar, não tenho mais nada que era nosso, você levou tudo junto e essa é a minha forma mais infantil de me vingar de você por você ter morrido. Droga. Eu não consigo mencionar isso sem chorar e sentir raiva. Eu sei que a culpa não é sua, mas eu te culpo mesmo assim, porque ter raiva de você é mais fácil do que confessar que as vezes choro de saudade e de dor por você ter me deixado aqui, por você não ter me levado junto. Esse mundo não é mesmo um lugar muito legal, não te merecia, eu sei. Mas eu não consigo mais pensar nessas coisas de casamento, de filhos, daqueles sonhos todos que a gente tinha e que apesar de parecer clichê, eu tinha certeza que seria diferente de tudo o que já passou por essa terra, porém você não conseguiu cumprir com a sua parte no acordo.

Quando alguém morre, quem fica aqui vivo geralmente faz as coisas que agradariam a pessoa que partiu. Eu não consigo. Eu faço o oposto de tudo, mas do meu jeito eu permaneço fiel. Quando me dizem pra te deixar "descansar em paz", eu recuso gritando. Por que eu deixaria? Você não me deixa descansar em paz. Você não me deixa amar ninguém da forma que eu amei você. Não me deixa sonhar mais com futuro. Não me permite criar expectativas de nada. E isso tudo sem dizer uma única palavra, somente por ter partido.

Eu não disse que te amava antes de você partir. Eu te liguei só pra te ouvir e fiquei muda, eu queria ter dito que te amava, se eu soubesse que era a última vez que estava ouvindo a sua voz, eu teria dito, mas eu não disse. Acho que vou carregar isso pra sempre. Tanto faz. Odeio você. Odeio muito. Se eu pudesse te trazer de volta a vida, faria isso pra te espancar até você não aguentar mais. Céus! Eu ia te arrebentar, cara! Mas não posso. Então vou seguir como der, levando a minha vida "meio punk, meio grunge", como você mesmo dizia. E se não der, ficarei estagnada no tempo. Acho que é exatamente isso que tenho feito. Não tenho muitas certezas hoje em dia.

Esse é o adeus que eu não pude te dar.

Estrela

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Oi, sei que o momento não é o mais oportuno, imagino que não esteja bem com toda essa situação, eu mesmo também não estou. Mas acabei decidindo meio unilateralmente isso. Porém sei que devia desejar isso havia algum tempo... não vou fazer acusações nem nada do tipo. Estou cansado demais pra isso. Só quero te desejar que fique bem. Eu vou sumir por algum tempo. Rodar por aí, buscar novas inspirações, quem sabe me perder mais ainda e, assim, me encontrar.

Não é fácil, e ninguem nunca disse que seria, mas é necessário. Assim como te fiz parar de sofrer por feridas antigas, fizeste o mesmo comigo. Fomos importantes um pro outro assim. Desejamos e nos cuidamos até agora, o momento em que ganhamos alta de nosso tratamento mútuo. Podemos deixar a cadeira de rodas para trás e seguir com nossas próprias pernas. No começo vamos fraquejar, podemos até voltar a cair. Mas... já sabemos como é ficar em pé. Por isso sei que vamos conseguir nos levantar por nós mesmos e seguir adiante.

Espero que se cuide e, mesmo não estando presente, vou deixar uma estrela cuidando de você. Sei que logo vai achar nos olhos de alguem o brilho que deve ter achado nos meus. Claro, não tão brilhante (hahahaha) mas, ainda assim, alguem que irá te cuidar melhor do que eu cuidei. Alguem que não vai cometer as mesmas burradas que cometi, alguem para... amar.

Cuide-se.
~ Eu.

ps.: vire a folha achará a estrela que te prometi.

*verso*


Grito Silencioso

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Era noite, mais uma noite fria e escura. Eu andava com mais três amigos maconheiros de longa data. Passavamos em frente a casas grandes e elegantes com muro baixo. Pensei por uns instantes que era arriscado andar fumando maconha por lá, devia ter ronda policial o tempo todo. Meus amigos riam, Mike já estava bêbado, em uma brincadeira boba de jogar um isqueiro para o Rafa, acabou deixando o isqueiro cair dentro de uma das casas grandes. Quem reclamou foi o Derick, que era dono daquela porcariazinha que segundo ele, custava mais de trezentos reais. Os três discutiam enquanto eu permanecia em silêncio com as mãos nos bolsos da blusa. Era assim que eu curtia as minhas brisas, em silêncio.
Como um isqueiro podia ser tão caro? Era bonitinho, parecia uma miniatura de pistola. Tinha o nome de alguma marca gravada em ouro no cano. Quando se "puxava" o gatilho o fogo aparecia. Era possível também regular a intensidade do fogo ou usar o isqueiro como lanterna. Ainda assim achei que 300 reais era muito dinheiro.
 Derick começou a choramingar e discutir com com o Mike. Rafa não sabia de que lado ficar. Não demorou pra virar uma confusão. Nenhum dos três queria pular na casa e recuperar o tal isqueiro caro. Decidi fazer esse favor ao caçula do grupo. Respirei fundo e olhei para a casa, o muro não era tão baixo. Não entendi como Mike poderia ter deixado algo cair lá dentro sem ter a intenção de fazer isso. Bem, o muro alto não seria problema. Sempre fui acostumada a escalar muros, subir em árvores e lugares altos. Por sorte havia uma árvore na calçada cujos galhos davam acesso ao jardim da casa. Planejei rapidamente como faria, tomei fôlego e subi na árvore. Quando estava na ponta de um galho, a vista da casa me assustou. O jardim era enorme. A casa era grande, mas parecia morta. Havia uma espécie de córrego no jardim, justamente onde imaginei que o isqueiro havia caído. O corrego era um declive que levava a uma portela que deveria ser o porão. Droga, a porcaria do isqueiro deve ter escorregado por lá. A luz do porão estava acesa, estranho. Se houvesse alguém na casa, no mínimo chamariam a polícia. Eu não estava mais com drogas e nem pretendia roubar, talvez passasse a noite na cadeia, tanto faz. Saltei no jardim. A queda foi um tanto alta. Procurei o isqueiro pelo jardim, A iluminação era péssima. Não estava lá. Olhei para o córrego, logo fui até a portinhola do porão, as luzes apagaram. 
Sinto como se tivesse tido um lapso de memória naquele momento, não sei o que aconteceu, quando me dei conta já estava no meio do porão que não era bem um porão. Tinha cara de piso subterrâneo de fábrica. Tinha cheiro de açougue. Estar lá me causava arrepios. Não era hora pra ser covarde, eu precisava ir embora rápido. Passar a noite na cadeia pela segunda vez na semana não era uma boa ideia.
Levantei e dei alguns passos por aquele lugar, mal conseguia me concentrar no motivo de estar lá. Odiei o Mike, o Derick e até o Rafa por alguns segundos. Eles deveriam ser homens o suficiente pra ir atrás daquela porcaria.
 Tropecei em algo, caí. Inclinei a cabeça tentado saber no que tinha tropeçado. Antes que eu olhasse, ouvi uma voz macia e levemente infantil:
- Oi!
Arrepiei. Era uma garota, certamente. Já imaginei a polícia chegando e fazendo varias perguntas. O Derick era menor de idade. Céus, eu não devia ter entrado lá! Tentei me explicar:
"- Oi! É... Ãn... Olha, não é o que você está pensando, eu não vim aqui roubar nada. Um amigo deixou um objeto cair aqui e só vim procurar mas já estou indo embora." - Apoiei as mãos no chão para levantar, olhei para trás. Era uma garota. Ela estava sentada com os braços em volta dos joelhos me olhando com um sorriso fraternal. Seus cabelos eram curtos, seguiam o nível do rosto. Loiros e extremamente lisos. Ela era tão branca e magra que chegava a assustar. Usava uma regata cinza grande e suja e um short com bolsos rasgados que ficava largo nela. Aquelas roupas eram velhas. Não entendi por quê uma garota que morava em uma casa tão grande usaria roupas tão velhas. Que seja, eu precisava ir embora. Me levantei pedindo desculpas e dizendo que estava de saída, ela me interrompeu segurando a barra da minha calça enquanto eu passava por ela. Que gesto infantil! Quantos anos ela teria? Doze? Treze talvez?
- Tudo bem, você não precisa ir embora agora. - ela mostrou um sorriso amarelo com um olhar de quem implora por atenção. - Eu não vou chamar ninguém. Fica aqui. - Ela puxou a barra da minha calça com mais força. A situação começou a me deixar nervosa. Quando eu olhava para ela, sentia pena. Que diabos estava acontecendo ali?
- Olha... Eu preciso ir embora. Não posso ficar, nem sei o que você faz aqui embaixo... Garota.
- Sally. Meu nome é Sally. - Ela me corrigiu sorrindo. - Eu vou te contar. Não vá agora. Eu estou presa aqui. Não tenho como sair. - Chequei o "porão", havia várias portas, antes que eu questionasse, ela prosseguiu - Não posso sair daqui porque estou morta.
Eu ri alto e histericamente naquele momento. Que piada mais estúpida! As crianças de hoje devem assistir filmes demais. Quando me coloquei de pé, a portela que dava acesso a saída se fechou, assim, sozinha. Tremi. Já era loucura demais pra mim. O som da porta se fechando cortou o meu riso instantaneamente. Aquela droga devia ser mais forte do que eu imaginei. Jurei a mim mesma que não fumaria maconha por um bom tempo depois daquilo. Tentei me convencer de que era só uma badtrip e que logo iria passar. A menina puxou meu braço e me disse pra ficar quieta, caí sentada ao lado dela. Ouvi a voz de um homem.
- Sally! Sally, venha aqui querida. Não faça assim com o papai. Esqueceu que eu cuido de você e da sua irmã? Nós três somos uma família. Apareça. Sally!
Olhei para Sally. Ela estava encolhida do meu lado, apertando o meu braço e tremendo. Tentei puxar o braço enquanto falei baixinho:
- Ei, o seu pai vai chamar a polícia, eu preciso sair daqui!
- ELE NÃO É O MEU PAI! - Ela gritou. Fiquei pálida, olhei na direção do homem. Ele não ouviu. Como assim? Sally continuou
- Era meu padrasto. Pai da minha irmã mais nova. Ele matou a minha mãe pra ficar com isso tudo pra ele.
- O-o quê?! - gaguejei em choque - e por que você não chamou a polícia? Porque não conta a alguém?
- Estou contando pra você agora. Shhh! Presta atenção. - Ela colocou o indicador sobre meus lábios, em seguida apontando para o padrasto.
- Sally! Aí está você, sua travessa! - Não pude acreditar no que meus olhos viam. Era a Sally se aproximando do padrasto que a puxou pelo braço até uma das salas. Ela estava do meu lado, mas eu a via ali, a minha frente. - Você está no meu campo de memórias, por isso está vendo o que vivi - Ela justificou.
As cenas seguintes me matavam por dentro. O tal homem sentou-se em uma cadeira. Sally ajoelhou-se diante dele. Não. Eu não podia ver mais. A voz dele me dava nojo. - Faça isso direito dessa vez, sua pequena vadia! - Abracei Sally. Gritei um palavrão. O homem inclinou a cabeça e empurrou Sally enquanto subia as calças com a outra mão. Ela caiu, bateu a testa de uma forma que deixou um rastro de sangue na parede. O padrasto de Sally parecia furioso. Pegou um alicate e saiu atrás da menina. No instante em que gritei, tudo sumiu.
- Você imagina o que aconteceu depois, não é? - Sally perguntou me encarando conformada.
- Esse filho da puta te bateu? Foi assim que você morreu? - Eu percebi que meu rosto estava molhado.
- Não. - Ela deu um sorriso triste de canto. - Eu bem que gostaria de ter morrido aí, mas tinha 14 anos. Morri no meu aniversario de quinze anos. Desde então todos os dias é meu aniversario. O tempo nunca mais passou. Ninguém nunca ouviu meus gritos. Ele arrancou algum dos meus dentes. Disse que "atrapalhava o serviço".
Será que ela conseguia ouvir as palavras que saíam da própria boca? Senti vontade de vomitar. As coisas à minha volta foram escurecendo, minhas mãos e pés formigaram.
- Você está bem? - Sally me olhou com os olhos arregalados tocando o meu rosto.
- Se você está morta, por quê eu consigo te ver, te tocar e assistir tuas lembranças? - Jurei que fosse desmaiar ali.
- Você entrou no território de uma alma que morreu em segredo. Que carregou sozinha tanta dor sem nunca contar a ninguém. Que não tem quem pensou sequer em fazer justiça por ela.
Eu estava tonta demais pra discordar. Já tinha aceitado o fato de ter exagerado nas drogas. Eu só queria que passasse. Perguntei o que imaginei que fosse me tirar dali.
- Sally... Como você morreu?
Outra vez. Vi o maldito do homem jogar Sally no chão do porão enquanto alguma criança chorava ao fundo. Sally gritou. Ele rasgou as roupas dela. Ele a violentou. Em dado momento ela parou de gritar e apenas esperou que acabasse. Havia sangue no chão. Quando ele terminou, puxou Sally, nua mesmo. Pediu que fosse buscar álcool. Quando ela trouxe, ele deu uma bofetada em seu rosto que a fez cair em cima de suas roupas. Jogou álcool sobre ela e por todo aquele lugar...  Então acendeu um fósforo. Me senti no inferno. Sally segurou minha mão e disse "obrigada por ter me ouvido, já posso ir em paz." O espírito dela que estava ali comigo sumiu. Tudo o que restou foram as chamas e a fumaça que me sufocava enquanto eu gritava e chorava.
Acordei, minha roupa e meu travesseiro estavam molhados. Agradeci por ter sido um pesadelo. Chorei cerca de dez minutos. Coloquei os pés para fora da cama e pisei em algo. Era o isqueiro do Derick.



Por Annelouise Amelie

à Astronauta de Mármore

sábado, 6 de julho de 2013

Olá, minha filha, espero que esta lhe encontre bem.

Quero que saiba que, apesar da demora em lhe encontrar, eu acabei conseguindo. Sei que fez muitas coisas erradas, sei que pesam algumas pendencias legais sobre você nesse momento, mas quero que saiba que, tanto eu quanto seu pai e sua irmã estamos do seu lado aconteça o que acontecer. Demoramos muito para te achar na rua. Foi demorado justamente porque as ruas estão cheias, são perigosas, mas felizmente te encontramos e agora fazem dois meses que obtivemos a vaga na clinica de recuperação. Os medicos dizem que é dificil dar qualquer parecer... mas tenho fé de que logo estaremos todos juntos comendo aquela lasanha que sei que adora. Sei que logo estaremos todos juntos novamente.

Sobre seus pecados... sei que Deus já te perdoou assim como eu perdoei. Não era culpa sua. Era culpa daquela porcaria que te deram. Deve estar pensando como te achamos não é? Suas cartas foram um alivio para mim, apesar das confissões que fazia nelas eu sabia que lá dentro daquele ser, daquela pessoa destruída por fora ainda vivia minha menina, minha Carolina, minha Carol, minha menina de cachinhos rebeldes. Baseamos nossa busca naquele rapaz que comentou, Téo. A familia dele também o procurava havia algum tempo. Viu minha filha? A menor das esperanças, a mais pequena luz que suas cartas escritas em letra tremida, em um pedaço de papel ordinário salvou duas pessoas. Você e o Téo, que a familia tratou de levar para uma clinica em Minas, que é de onde são os pais dele.

Enfim... esperamos que, depois de concluído seu tratamento possamos todos nos reunirmos. Eu, você, seu pai, sua irmã, o pai, a tia e o proprio Téo para comermos aquela lasanha que sei que vai me ajudar a fazer. Sei que vai.

Beijos minha filha, lhe esperamos ansiosos!

Fica com Deus, se cuida, nós te amamos muito.

Vento da Mudança

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Ele: Hoje pela manhã dei um beijo nela enquanto ela ainda dormia, peguei as chaves do carro e segui para o trabalho. O trânsito não facilitava o trajeto, como esperado. Era cedo, mas você deve saber como as grandes metrópoles funcionam: as avenidas podem parar a qualquer momento. E ali, entre aquele mar de carros, comecei a lembrar de quando a conheci. Permiti que a minha mente regressasse no tempo. Fizemos tantos planos! Eu era um rebelde-quase-totalmente-irresponsável, e acredito que ela ainda me olhe dessa forma, mas a verdade não é bem essa. Ela me mudou, me fez crescer. E eu ainda custo a entender como ela que é tão fina consegue aturar um moleque maltrapilho feito eu. Ela sempre foi tudo o que eu nunca soube ser, ela era completa, eu era só um cara que tocava bateria em uma banda. Quase fomos expulsos do prédio dois meses depois de ter alugado o apartamento. Foi ela quem resolveu os problemas com o síndico e se desculpou pelo barulho de música alta que toda noite incomodava os vizinhos. Eu nunca disse, mas eu sempre gostei de contrariar o que ela fala porque adoro as expressões e argumentos dela. Adoro ver a forma como ela levanta a sobrancelha esquerda e aperta o lábio antes de começar aqueles longos discursos cheios de palavras difíceis. Será que ela me via como mais um dos alunos que ela tinha que pôr na linha? Eu nunca vou saber. Como pode uma mulher tão linda ser tão inteligente? Se um dia tivéssemos uma filha, eu gostaria que fosse como ela é. 


Ela: Eu acordava com o beijo suave dele todos os dias de manhã. Sempre via o relógio e imaginava se ele não podia ter um emprego mais perto de casa. Embora ele não tivesse que esperar ônibus, metrô nem nada a vida não era tão simples. Ouvi ele tomar o café e sair. Ainda tinha mais alguns minutos antes de levantar e me arrumar para sair para o colégio. Uma onda de nostalgia me invadiu, ele era um rebelde, desses que saem berrando pela rua altas horas da madrugada apenas para acordar todos. Ainda o via como um menino, apesar do tempo que estávamos juntos. Pouco mais de dois anos. Suspirei tendo meus devaneios rompidos pelo despertador. Coragem, só falta oito aulas. Me levantei, o dia passava no automático. Na hora do almoço chequei se havia trazido o pedido de exame. A tarde colocaria uma pedra sobre essa dúvida que me assolava tanto e me deixava com o sono curto. O dia voou, estava com o envelope em minhas mãos. Abro aqui? Minhas pernas me guiaram até o ponto de ônibus. Não abriria nada dentro do ônibus de volta para casa, não bastasse segurar minha já bem pesada bolsa cheia de livros e provas para corrigir, ainda teria que segurar a outra bolsa e abrir um envelope. Só se eu fosse um octópode e, definitivamente, não era o caso. Ao chegar em casa tudo estava sereno, calmo, como eu havia deixado quando saí de manhã. Ignorei todo o trabalho doméstico para dar atenção àquele envelope. O abri checando meu nome, diversos termos técnicos, nome de médico, do exame, das probabilidades e da exatidão do mesmo. Quanto desperdício de papel. Somente na terceira folha é que o resultado se mostrava óbvio para o paciente. Não contive o riso, o choro, euforia, eu estava tão feliz que se explodisse minha felicidade inundaria não só esse cômodo como o planeta, o universo, a criação inteira. Em letras maiúsculas um único adjetivo após a palavra "Grávida".


Ele: - A luz verde do semáforo acendeu e as centenas de máquinas que me rodeavam saíram a minha frente. Deixei o carro morrer quando tive meus pensamentos interrompidos pelo som de uma nova SMS no celular. Era ela. Queria conversar. O que seria dessa vez? Mais reclamações do síndico? Havia muito tempo que eu não escutava música em um volume muito alto. Talvez o problema agora fosse os meus amigos. Ela nunca gostou muito deles, reconheço que os caras eram folgados e tinham mania de descer no elevador completamente bêbados mexendo com as senhoras idosas. Tentei me preparar para a bronca, dei partida novamente no carro e segui até o trabalho, o dia parecia inacabável. 


Ela: Olhei o relógio, ainda faltavam algumas horas para que ele viesse. Como eu contaria a notícia? Ele sempre foi irresponsável, desde os tempos que eu fazia faculdade até alguns meses atrás. Ele era um rebelde. Incontestavelmente rebelde e, talvez fosse por esse jeito - como dizia a minha mãe - um pouco "punk" que eu tenha me encantado. Maldita mania de contrariar tudo. Qual graça ele via nisso? De qualquer forma, o que realmente me preocupava era a dúvida: como ele se sentiria ao descobrir que seria pai? Todas as vezes que eu mencionava o assunto "filhos", ele torcia o nariz e mudava de assunto. Bem, havia um ser dentro de mim e eu não era a única responsável por isso. Ele tinha que saber o mais rápido possível. Como as mocinhas de novela contavam? Deixavam o mocinho saber, eles se abraçavam, choravam juntos e viviam felizes para sempre, era, normalmente o fim da novela. O mesmo vale para livros, filmes... Toda a história da literatura a descoberta - ou revelação - de uma gravidez era o fim do livro, que era o clássico "felizes para sempre". Porém quando era antes disso, sempre era um revés para a mocinha, que acabava ou expulsa de casa ou sofria tudo sozinha... Terrível. Mandei uma SMS dizendo que precisávamos conversar. Não tínhamos brigas haviam alguns meses, então a resposta dele foi como eu esperava "o quê aconteceu?". Chequei na minha bolsa, resolvi dar um pulo no mercado e fazer um belo de um jantar. E, enquanto as panelas expulsavam vapores me benzi, orei, fiz promessas... Essas coisas de menina que foi criada com mãe católica fervorosa. Tomei um banho. Deixei o envelope sobre a mesa, somente com a última folha, onde o resultado era óbvio. Deixei para entregar durante a sobremesa. Isso. Assim que ele chegou o encaminhei ao banho e servi a mesa. O coração veio a boca. E se eu sumisse com o envelope? Não. Sem covardice agora. Eu seria a primeira mocinha a sobreviver a uma gravidez no meio do livro e seguiria firme até o felizes para sempre.


Ele: Quando abri a porta do apartamento, joguei as chaves sobre a mesa e tirei aquele terno horrível que me obrigavam a usar. Soltei os cabelos, me recusava a corta-los, não existia empresa capaz de me fazer mudar o ponto de vista. Tomei um banho rápido e corri para a mesa, faminto e curioso, esperando pelo quê ela teria a dizer. Sequer cogitei a hipótese de perguntar a ela como fora o seu dia. Estava certo de que ela brigaria comigo e me diria que já é momento de crescer. Sentei a mesa, ela parecia nervosa, inquieta, eu diria. Nunca a tinha visto daquela forma. Será que era grave? Eu tentava perguntar algo e ela ficava calada. Engoli a comida sem nem saborear, pra ser honesto, nem lembro o que comemos. Só lembro das mãos dela completamente trêmulas vindo em minha direção, segurando um envelope. Respirei fundo. 


Ela: Nos sentamos para cear. Jantamos, ele ficou curioso sobre o quê eu tinha para contar. Trouxe a sobremesa, junto dela o envelope. Entreguei a ele. Minha pulsação disparou, empalideci completamente. No instante que ele abria o envelope meu coração parou. Ele abriu a folha. A respiração ofegou. A minha foi junto. Ele não teve palavras. As lágrimas escorriam dos olhos dele juntamente com um sorriso que eu já não via tinha algum tempo. A rotina sempre acabava com alguma coisa dos casais. Mas agora... Algo completamente fora da rotina. Nos abraçamos com a folha entre a gente. Ele alisava meus cabelos e me fazia juras de amor que eu respondia no mesmo tom, na mesma emoção, ou, como diziam meus alunos "na mesma vibe". Desejei que aquele momento durasse eternamente.


Ele: Naquela noite, descobri que a minha vida mudaria para sempre. Descobri que seria pai. Eu, que terminei o ensino médio por pressão dos meus pais, porque na verdade sempre quis ser músico. Eu, que nunca me importei muito com as coisas. Eu, que além de tocar bateria, a única outra coisa na qual me saía bem, era em jogar video game. Esse mané teria um bebê pra segurar nos braços. De imediato, levei um susto. Mas imaginei uma mãozinha pequena tocando a minha e me senti completo. Agora sim, éramos uma família. Hoje, Helena completa três anos. Ela é a garotinha de três anos mais linda que já vi. Ela tem os cabelinhos claros exatamente como os da mãe dela. E ela tem aquela mania de levantar a sobrancelha esquerda quando fica emburrada com alguma coisa. Como é que eu posso amar tanto um ser tão pequeno? Helena me ensinou sobre tudo. A minha filha me ensinou o que as empresas, a rotina e todo o cotidiano à minha volta tentavam me fazer esquecer. Minha esposa e eu costumávamos deitar debaixo da cerejeira em que nos beijamos pela primeira vez. Eu deitava no colo dela, e Helena apoiava a cabecinha sobre a minha barriga, então ficávamos nós três contando as estrelas e dando nome a elas. Ainda ontem, vi Helena vestida de bailarina me encarando com aqueles olhos verdes - que talvez seja uma das poucas coisas que ela herdou de mim - enquanto puxava minha camisa me chamando pra mostrar o que tinha aprendido. Eu vi a minha pequena das bochechas rosadas andando com a pontinha dos pés com as mãos sobre a cabeça. Naquele momento descobri que as vezes temos medo de que algo inesperado aconteça, medo a ponto de mudar de assunto toda vez que alguém tenta falar sobre. E aquele meu medo de ser responsável e cuidar, se transformou no presente mais bonito que alguém poderia receber. Eu só posso afirmar algo: se eu morresse amanhã, eu morreria sabendo que tive a melhor vida que qualquer um pode imaginar. Feliz aniversário, minha filha! Eu amo você.


Escrito por Luís Mitzco e Thata Bastos.

manha de quinta

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Bom dia meu amor, eu sei que odeia acordar sozinha, mas tive que ir. Desfaz esse bico. Sei que no fundo vai entender. E sei que vai ficar bicuda o dia inteiro, ranzinza. Logo eu apareço de novo, de surpresa... ou, vai me ver, vou deixar o endereço atrás desse bilhetinho. Não venha correndo porque a casa está uma bagunça ainda e não bate o pé dizendo que não se importa porque sei que não gosta da bagunça e não ia sossegar enquanto não arrumasse até a última caixa e o último armário estivesse devidamente arrumado.

Agora franziu a testa. Que bosta que tive que sair e não pude ver sua birrinha... mas seria um crime imperdoavel te acordar meu amor. Não teriam avés-maria e nem padres-nossos capazes de aplacar minha pena por ter lhe acordado, ainda mais pra dizer que eu estava indo... odiaria ver seu sorriso da manhã virar um bico por eu estar indo. Claro que adoraria te ver bater o pé e reclamar porque eu me mudei, eu ia achar graça nisso... aliás, acho graça em você toda meu amor. Se não estou pior, é porque sei que está aqui comigo, dentro de mim, a cada instante. E daí que não pode responder as SMS por falta de saldo? Não ligo. Sei que lê e sei que manda suas respostas por nuvens, pela luz da lua e sei que me ouve conversar com a lua.

Fique bem que eu fico também. Lembra que o plano era ficarmos bem, lembra né? Quando menos esperar eu te faço mais uma surpresa, mas não toda hora se não te deixo mimada hahahaha

Te amo, muito e tanto, tanto e muito.

T(eh) amo.
~ Prê