Leve

domingo, 10 de novembro de 2013

Talvez aquela última conversa, na padaria tenha sido a definitiva. O celular dela, prontamente desligado ao tocar, foi o badalar final. A pá de cal. O último sopro. A última pessoa a sair do prédio antes da implosão. Conversaram mais um ou dois minutos ao fim do sino. Não mais que vinte palavras. Ela o viu sair pagando o chocolate quente e um serenata de amor pra ela. Provavelmente ela estava crente de que ele voltaria ali nos próximos dias, sempre com um pretexto diferente, como se buscasse sempre reencontra-la. Ele saiu colocando o capacete sem a vontade de voltar. Coração partido? Sim, claro. Mas, por mais estranho que possa parecer, tranquilo. Porque ele a deixava com outrem cuidando dela. A emoção tomou conta dele ao subir na moto e dar a partida saindo rumo a sua casa, no litoral. Uma lágrima ousou sair de seus olhos e molhar seu rosto. Ao chegar em casa havia uma carta na caixa de correio. Conta? Não. Letra bonita. Algumas notas musicais ornavam o envelope. A pianista. Ele suspirou entrando e lendo as poucas linhas. Ela agradecia por tudo, mas tinha se encontrado com um velho amigo e esse lhe fez uma proposta daquelas impossiveis de recusar: passar dois anos estudando piano em Viena, Austria.

No fundo ele sabia que o romance com a Pianista duraria pouco. Durou o suficiente pra se tornar inesquecivel. O mesmo que havia acontecido com ela. Claro que ela era diferente. Era algo infinitamente maior, mais intenso, mais duradouro. Se ele fosse compositor comporia o réquiem agora. Mas não era. No máximo ele escrevia e desenhava, compor não era com ele. Deixou as chaves e o pão sobre a mesa. Esperou a casa perder a luz natural que trespassava a cortina. Em poucas horas deixou que as duas fossem. Pra pianista depois escreveria um e-mail lhe desejando sorte e tudo de bom e não esquecer de visita-lo quando voltasse. Para ela... para ela... subiu à laje vendo o sol sumir aos poucos e as nuvens adornando-o com uma coroa. Fechou os olhos, sorriu e, mentalmente escreveu uma pequena carta onde, resumidamente, despedia-se dela. Ao abrir os olhos se sentiu mais leve. Leve ao ponto de saber que ela, certamente, receberia a mensagem e ficaria e tiraria os pés do chão se deixando levitar, quem sabe até voar acima das nuvens. Assim como ele fazia agora. Leve de leveza, leve de beleza, leve com certeza, leve com clareza, leveza de leveza.

Vinho tinto

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Cheguei ao apartamento dela naquela noite de agosto. Ouvi, ainda do lado de fora, o som da música que ela escutava. Blues. Virei as chaves devagar, evitando fazer barulho. Entrei tirando os sapatos. Certamente estava embriagada, tivera um dia difícil e nessas ocasiões era bom nem tentar conversar. Ao levantar a cabeça, vi duas garrafas de vinho tinto sobre a mesa. Olhei para o sofá e vi o corpo dela, quase nu, iluminado apenas pela luz da rua que atravessava a janela, as luzes do apartamento estavam apagadas. Ela estava com os olhos fechados, parecia sentir as notas da música com toda intensidade que havia dentro de si. Tomei o que restava do vinho em uma das garrafas e sentei-me ao chão enquanto a observava. Seus lábios se moviam sem emitir nenhum som, seus dedos deslizavam sobre o próprio corpo no ritmo da música. Ela parecia ter saído de alguma tela. Era surreal. Senti que os lábios dela me chamavam quando sutilmente aproximei-me dela, toquei seus cabelos, seu rosto e então juntei meus lábios aos seus. Suas mãos encontraram as minhas. Senti que seu corpo sentia frio, então a escondi em minha pele. Sentia seu cheiro, seu beijo lento, seu toque certeiro. E sem nenhuma palavra, a amei até que o sol voltasse. Gravei-a em mim. Decorei cada parte de seu corpo. Aprendi a ler como se fosse partitura, já sabia a forma correta de tocar. Apreciei-a com toda dignidade da composição perfeita que ela é. Ela ficou, eu parti. E de todas as canções, ela ainda é a minha favorita.