Instintivo

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

"Sempre gostei de biologia, particularmente eu achava a cadeia alimentar muito interessante. Os insetos se alimentavam de outros insetos. Os animais pequenos eram devorados por animais maiores e os seres humanos, por sua vez, se alimentavam dos animais e também devoravam uns aos outros."

Era só mais uma quarta-feira de chuva onde eu normalmente ficaria em casa vendo série policial, lendo ou tocando piano enquanto o pequeno Mik tentaria escalar meu colo a fim de alcançar as teclas. Mik é meu meio irmão caçula, filho de meu pai e Lilian. Diferente de Peter que não tinha lá grandes semelhanças comigo, Mik tinha chamas na pupila. O mesmo tom que as vezes lembrava mel, as vezes avelã avermelhado tanto nos cabelos quanto nos olhos. Fato que deixava Lilian ligeiramente furiosa, tanto o apego de Mik por mim quanto suas semelhanças físicas... É que eu lembrava a grande rival de Lilian: a falecida Helena Rosália. Sim, outra Helena. Por coincidência, minha mãe.
Lilian... Sempre histérica. Peter, sempre silencioso demais pra um garoto de nove oito anos. Meu pai, tentando ser um pai... eu acho. Não sei. Não sei onde andava a cabeça de meu pai. Sei que a minha estava cheia. Eu odiava ter dias iguais, odiava andar na linha e certamente eu morreria se não escapasse vez por outra. Recebi uma mensagem no celular "Saudades, gatinha. Espero que não esteja chateada. Um beijo daqueles" Era Dimitri. O cara por quem eu fui apaixonada todo o tempo de escola. Ficamos juntos até o começo do primeiro ano, quando ele era um cara legal, até ele começar a andar com... Não importa muito. Ainda estava chateada. Odiava a forma como ele falava comigo. Odiava o novo Dimitri, mas no fundo sempre achava que ia encontrar o meu Dim ao receber um beijo na testa depois de uma de nossas aventuras...

Resolvido: colocaria meu velho jeans, a jaqueta e o coturno. Um batom, soltar os cabelos e uma aparição surpresa talvez não fosse tão ruim.

Sai de casa com uma pequena garrafa de Coca-Cola em mãos. Sempre achei uma palhaçada isso de nomes escritos em embalagens, mas se fosse pra ter, então que tivesse o meu nome. A chuva não foi gentil comigo.
No primeiro toque de campanhia, a mãe de Dim apareceu no portão franzindo a testa como quem tenta ter certeza do que está vendo. Ela me encarou e logo soltou:
— Helena, é você mesma ou eu fiquei velha e gagá?
— A própria em carne e osso.
— Ora, menina, mas quanto tempo! — Ela me olhou de baixo pra cima — Você não muda mesmo, né? Continua usando essas roupas esquisitas de quem trabalha em cemitério.
Ri de canto enquanto ela abria o portão
— Também senti sua falta, Dona Débora.
Entrei e subi as escadas depressa, assim que cheguei na porta me deparei com Dim, suas pupilas estavam tão dilatadas que cogitei a hipótese dele ter acabado de usar cocaína.
— Helena Vincent.
— Dimitri Müller.

Não dissemos mais nada. Apenas ouvi o ruído da porta fechando devagar. Dim me segurou com força contra a parede e me beijou como se não beijasse ninguém há anos. Seus lábios corriam por meu pescoço e sua respiração ofegante ao meu ouvido me faziam corar. Eu poderia mergulhar naquele momento centenas de vezes incansavelmente. Não demorou mais do que cinco minutos até estarmos completamemte nus. Entreguei-me a Dimitri como nunca fizera antes. Pensei no cara em que amei. Sentia o sabor do vinho em seus lábios enquanto seu corpo estava completamente entrelaçado ao meu. Ele parecia sedento e eu gostava daquilo. Eu gostava da adrenalina que me trazia. Presos um ao outro, suas mãos tocavam as minhas, toquei seu rosto, Dimitri me encarou por alguns segundos como se fosse dizer algo mas pareceu engolir e simplesmente me prendeu pelo pulso com tanta força que seus dedos ficaram marcados em minha pele.
Outra de nossas aventuras se findou e o beijo na testa não veio. Encostei a cabeça em Dimitri. Acariciei levemente seu peito sentindo o relevo da tatuagem de lobo recém feita. Aquele momento foi curto. Senti vontade de chorar, mas felizmente estava cansada demais. Resolvi outra vez só deixar pra lá.

Logo Dim levantou colocando as calças e apertanto o cinto depressa. Ele jogou um olhar maldoso pra mim enquanto passava a língua no contorno dos lábios. Aquilo me fez lembrar os filmes de vampiros que eu assistia, quando o vampiro acabava de saciar-se com o sangue de alguém o ritual era o mesmo: passar a língua pelos lábios aproveitando até a última gota.

Eu então eu sabia que já não existia mais amor, nem mesmo consideração. Éramos apenas presas na cadeia alimentar um do outro. Éramos apenas lembranças de um passado que mais parecia um quadro desbotado na parede.
Exausta, adormeci.