Bicho-Papão

domingo, 29 de outubro de 2017

Tarde cinza. Beijos do vento. A fome se foi, as lágrimas vão e voltam incansavelmente. Quantas tempestades já chorei hoje?
No litoral da angustia, os olhos são sempre marejados.

Onde as palavras não encaixam e perdem-se ao serem ditas, o silencio será o meu manto que nunca aquece, que não protege, que serve apenas como esconderijo do bicho-papão que é o medo.
De estar só.
De ser inaudível, invisível, insignificante e imperceptível.
Do medo de sentir as cordas vocais vibrarem e o som se propagando no ar, ainda assim, ninguém ouve, nada muda.
Nada muda.
N
a
d
a.
Medo da impaciência. Medo de ser só em meio à tantos.

Bicho-papão Medos Incoerentes, por terem tornado-se reais há tanto tempo.

Todas as rosas

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Outra tarde qualquer, desci as escadas, as calçadas estavam desabitadas e com pequenas poças d'água causadas pela chuva da madrugada. Abri a caixa de correios, era ela. Carta dela. Notícias dela. Até mesmo o papel tinha seu cheiro, o qual eu lembrava nitidamente. Eu era capaz de visualizar as mãos pequenas correndo pelas letras... ah, a saudade cravou as unhas sem misericórdia. Corri de volta p'ro quarto, coloquei o CD favorito dela p'ra tocar. Deitei na cama, fechei os olhos. Ela estava ao meu lado. Seus lábios cantarolavam quase em silêncio nossas canções favoritas. Os lábios dela... Aqueles lábios, os meus lábios... Poderiam permanecer juntos por toda eternidade, com pequenas pausas para que, vez por outra, meus lábios marcassem presença pelo resto de seu corpo.
A cada acorde, uma lembrança. A cada lembrança, uma lágrima. E um sorriso. Assim mesmo, tudo junto, fora de ordem, insano, tal como costumávamos ser. Ela era minha e eu era dela e não haveria - nem em um milhão de anos - nada que mudaria isso. Tempo, espaço, circunstância ou distância eram nulos quando o assunto era o que seu sorriso me causava. Meu Deus. Por Deus. Por todos os deuses, que sorriso era aquele?

Como quem sopra vida sobre um corpo morto, ela soprava inspiração à alma borrada de poeta. Ao fim do disco, meu travesseiro estava molhado, meu peito apertava. O devaneio acabara. Por que esperar mais? Peguei a mesma mochila. O que levar? Dane-se a mochila. 
Coloquei a carteira no bolso, segui viagem. Levava comigo apenas uma das cópias das chaves que ela havia deixado comigo. Comprei rosas na rodoviária. Ao chegar, percebi que a casa estava vazia. Respirei fundo. Decidi entrar. Fui até seu quarto, as coisas não estavam no mesmo lugar, mas seu cheiro dizia inegavelmente que ela estivera ali há pouco. Espalhei as rosas, da entrada da casa até sua cama, onde deixei uma pequena carta escrita lá mesmo. Esperei por algumas horas na sala. Nada. Ninguém.

Roubei um pacote de biscoito no armário da cozinha, dei um sorriso idiota e chamei um táxi. Ela estava cruzando a rua quando entrei no carro, não me viu. Meu coração disparou, já era noite. Olhei para o céu, sua estrela sorriu me sorriu. Devolvi o sorriso. Era hora de ir. 

O fim

quarta-feira, 5 de julho de 2017

Ela gostava de meias de dedinhos, gostava de creme de avelã e de cappuccino. Ela gostava de conversar até amanhecer e de tirar cochilos a tarde.
Gostava de arte, de Van Gogh e Salvador Dali. Gostava de Monet ocasionalmente.
Ela gostava de tardes e noites chuvosas. Amava a chuva. Amava andar na chuva. Amava dormir ouvindo a chuva. Gostava do céu de tempestade, dos relâmpagos clareando a cidade.
Ela gostava de romances, gostava de surpresas, gostava de flores. Gostava de corações, cartas e cartões. Gostava de filhotes. Gostava de viagens, queria ser comissária de bordo as vezes mas nunca realmente acreditou ter porte pra isso. O que ela queria mesmo era ser médica. Ou cantora. Talvez pianista. Não era boa em nenhuma dessas coisas.
Queria tocar violão na praia a beira do mar. Queria ter um amor intenso de filme, três filhos, dois cães, uma calopsita e uma casa com jardim.
Ao mesmo tempo queria fazer um mochilão mundo afora, sem previsão de volta.
Roía as unhas, fazia pequenos cortes na pele e se escondia em sua ira. As vezes gritava. As vezes preferia o silêncio.
Não era politicamente correta, não era muito lícita, o errado a atraía e ela seguia vez por outra. Em breves momentos de loucura, ela optava por fazer o que era "certo".  Era constantemente chamada de doente. Não era nada além de incompreendida, eu diria. Ela era sentimento e agia com sentimento. Deixava o lado racional pra quando a formalidade se fizesse necessária. Era insanamente apaixonada por aquele olhar azul acinzentado que acompanhava um belo sorriso com covinhas.
Ela gostava de subir em árvores. De pular poças d'água, de ler e escrever poesias.
Ela gostava de milk-shake de Ovomaltine.
Gostava de pisar em folhas secas.
Gostava de contar estrelas.
Gostava de fazer planos mesmo sabendo que a maioria era utopia.
Ouvia as sinfonias tristes de Beethoven e qualquer clássico de chorar. Ouvia Pink Floyd, Strokes, Nirvana, Guns, The Doors, todo tipo de barulho. Era toda Rock 'N' Roll, até teve uma fase na qual andava de preto o tempo todo, nunca abriu mão do bom e velho allstar.
Não era uma garota fácil de lidar. Isso precisa ser dito.
Ela tinha coração bobo e se apaixonava rápido pelo que a atraía, porém não sabia amar.

Nunca soube.

Mas amou! E como amou! O amor consumiu sua energia, sua memória, seus dias, suas companhias, sua alma e seu corpo. O amor consumiu seu tempo e suas forças.
De gente, transformou-se em lágrimas. De lágrimas, virou pó.

Ela sempre soube que não estaria por aqui durante muito tempo, fez questão de SER o quanto pode SER. Entregou-se a tudo que a encantava porque um dia tudo estava destinado a acabar.
E então, assim como esse texto, subitamente ela partiu.

Sem volta.

Para ser guardado

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Hey, meu bem

Estou escrevendo hoje só pra te lembrar de lembrar.
Lembrar vez por outra de algo que gosta em mim, é necessário manter alguma admiração em dia. Lembrar que ainda te cubro enquanto você dorme. De não deixar você esquecer de dar aquele beijo de bom dia ou de fazer um carinho durante o sono. De não esquecer de trazer o café na cama esporadicamente ou de me chamar pra sair, nem que seja pra sentar na calçada e discutir teorias sobre o universo. Te lembrar de não ter medo de arriscar, não ter medo da aventura, do novo, da adrenalina. Precisamos de adrenalina, meu bem. Precisamos redescobrir um ao outro, tanto hoje como todos os outros dias. 

Não esquece o bilhete romântico com a flor roubada na rua, as pequenas surpresas, os detalhes, de dizer que ama. De mostrar que ama.
Não esquece o desejo, a vontade, o êxtase.
Não esquece a pessoa que há por debaixo da pele.
Não esquece de ti, também.
Não esquece do que éramos, somos e pretendemos ser.
Não deixa nosso amor desbotar, não.
Não deixa tudo murchar feito rosa sem água. Continue nos regando, nos deixando florescer.
Escrevo hoje pra lembrar que te amo. Que tudo é diferente, mas te ver ainda me lembra a sensação que eu tinha ao descer as escadas para abrir o portão cada vez que você chegava. A mesma taquicardia, o mesmo brilho no olhar com a pupila ainda dilatada. Pra lembrar que não importa o quanto eu esteja te vendo, ainda sinto saudade.

Ps: Lembra do que me disse quando perguntei o que faria se eu fosse embora? Então.

te amo

O bilhete no teu travesseiro

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Você dorme e eu te olho com uma vontade absurda de ter você, de sentir sua boca encostada no meu ouvido, de me juntar contigo assim sem avisar, mas penso que talvez isso fosse dado como quebra de contrato. Temos as nossas leis, vamos ao início. Coloquei meu coração na caixinha junto com a aliança e ele ficou lá, guardadinho. Te olho e te quero mesmo sem hoje ter muita certeza de quem você é, de quem eu sou, do que somos. Só quero. Sabe bem que sou assim. As vezes vou fazer manha e rolar pro lado esquerdo da cama só pra ver você se empurrar pra perto e me puxar de volta pela cintura. Pra sentir esse seu "vem cá ou eu te puxo pra mim". Precisa ser assim, as vezes você precisa me puxar, a maioria delas, mas eu vou.
Eu sempre vou.

Garoa

domingo, 9 de abril de 2017

Costumava andar lado a lado com a solidão, segurava sua mão com força, tínhamos uma relação intensa de intimidade. Tanta foi a intensidade que ela desistiu de andar ao meu lado, quis dar um passo maior. Hoje vive dentro de mim, tem de mim tudo que sou. Deve ser isso o tal do amor.

Adequações

sábado, 18 de fevereiro de 2017

De: ele
Para: ela
Assunto: [sem assunto]

Olá, não sei bem como começar essa carta, eu sei o que eu tenho que escrever mas não sei como escrever da forma rebuscada que sempre trocamos nossas cartas.

Não vou fazer acusações, dizer que a culpa é tua, minha, dos vários alguens que atravessaram nosso caminho ou do tapete em formato de borboleta que rodei meia cidade pra achar.

Não. Faço um mea culpa porque pisei na bola inúmeras vezes. Mas a verdade (dolorosa, diga-se de passagem) é uma só uma: eu sou conveniente. Dizes que temos ligação e tudo mais, que quanto estas mal me procura e eu te faço sorrir e tudo mais, que isso é uma ligação psíquica e toda essa coisa que acontece em filme...

Mas... e quando eu estou mal a ligação se rompe. Tu somes, se afasta. Não deve querer essa energia perto de ti. Compreendo. Sei que não é fácil conviver com alguém que a lembrança mais antiga que tem é a de querer morrer. Eu sei que tinhamos um acordo sobre esse acordo, mas eu simplesmente não consigo mais evitar pensar nisso. É mais forte do que eu. Sinceramente não acho sustentável essa relação de "okay, hoje preciso dele porque estou mal" e quando ele ta mal ela some.

Enfim. Se eu parecer frio e distante a partir do clique no enviar não se assuste. Ou se assuste, porque vamos estar um passo adiante nos nossos futuros.

~ Eu